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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O mito do cafajeste

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O mito do cafajeste
Os homens (não as mulheres) são obcecados pelo sedutor sem escrúpulos
Ivan Martins
Arquivo Época
IVAN MARTINS

Um das lendas mais poderosas e influentes da vida sexual brasileira é a dos cafajestes. Esse personagem sem sentimentos, sem caráter e sem escrúpulos, mas com enorme apelo sexual, seria, lá no fundo, o sonho de consumo de todas as mulheres.

Eu tenho ouvido essa conversa desde criança, propagada nos círculos de conversa masculinos.

A lenda diz, em resumo, que as mulheres preferem homens sedutores que não criam vínculos e são infiéis. Os homens que gostam delas, que se envolvem e que desejam manter com elas uma relação estável não passam de Planos B - enquanto não aparece um cafajeste, elas ficam com os bonzinhos.

Se você, leitor, não está familiarizado com essa mitologia, basta dar uma olhada no arquivo de comentários desta coluna. Quase toda semana, quase infalivelmente, aparece um leitor (nunca uma leitora!) para dizer que aquilo que eu escrevo é bonitinho, bem-intencionado e tal, mas, no fundo, ingênuo, porque mulheres gostam realmente é de matadores, pegadores, comedores... cafajestes, enfim.
Segundo esses tradutores da alma feminina, as mulheres desejam ser tratadas (ainda que elas mesmas não saibam) como objetos de utilidade limitada - para obter prazer, dinheiro ou qualquer outro tipo de vantagem transitória.
Se você acreditar nessa cartilha, vai concluir que mulheres são almas submissas a espera de um macho capaz de revelar sua verdadeira natureza masoquista. Os caras que as respeitam e conversam com elas como iguais não têm menor chance: o que elas querem é serem derrubadas, usadas e abandonadas.
Bem, eu tenho um milhão de problemas com essa visão da psique feminina, mas vou me concentrar em uma objeção central: ela é inteiramente construída pelos homens.
Os homens são obcecados pelos cafajestes, não as mulheres. Nunca ouvi as mulheres falarem desse tipo de cara como objeto de desejo. Elas se referem aos cafajestes como doença, fraqueza, deslize, uma coisa que faz mal e da qual é preciso se ver livre.
Já ouvi de várias mulheres histórias de relações com (supostos) cafajestes, mas poucas vezes percebi nostalgia na conversa delas. A maioria parecia feliz em se ver livre de uma relação que provoca dor e vergonha. Ninguém merece um cafajeste, elas dizem.
Logo, temos de concluir que as mulheres são malucas, ou mentem para si mesmas ou estão dizendo a verdade - e, nesse caso, deveríamos acreditar nelas.
Se as mulheres não divulgam a lenda do cafajeste, e não parecem acreditar nela, de onde o mito tira a sua força? Dos homens, claro. Somos nós que alimentamos essas fantasias. Por que? Não sei, mas tenho algumas ideias.
O machismo me parece a explicação essencial. Desde a Bíblia ele insiste que as mulheres não são dignas de confiança. Basta uma cobra com uma conversa fiada e, pronto, lá se foi a vida ociosa e eterna da humanidade. Eva, aquela fútil.
Em termos modernos, a visão machista insiste que as moças são incapazes de diferenciar o que é bom do que é mau para elas mesmas. Em vez de escolher um sujeito bacana, que gosta delas, preferem cair na conversa de um malandro bonitão que, logo adiante, vai tratá-las muito mal. É outro jeito de chamar de burra, não? Também é outra forma de chamar de louca, já que elas seriam incapazes de controlar as suas emoções e sensações mais simples.
A essa conversa, que justifica tratar as mulheres como retardadas ou levianas, juntam-se a baixa auto-estima e os medos masculinos: um sujeito não pode virar as costas e se distrair por um minuto porque o mundo está cheio de predadores cheios de lábia para arrastar a mulher que ele ama ao submundo da carne.
O cafajeste, neste caso, é o lobo mau, o bicho-papão que vai roubar a namorada do menino bonzinho. Por trás desse temor exagerado tem a parte da lenda que diz que os cafajestes são os reis do lençol, tipos irresistíveis capazes de enlouquecer qualquer mulher. Mas será mesmo?
Quase todo mundo com quem eu já conversei, homem ou mulher, atesta que sexo é como tocar um instrumento: só melhora com a prática. A ideia de que um mestre kung fu do erotismo vai sair do fundo do salão e transformar a mulher que a gente ama em escrava sexual só existe de verdade na paranóia masculina. Já ouvi mulheres relatarem boas transas com esse tipo de cara, mas nada que tenha mudado a vida delas.
Então a lenda dos cafajestes não tem qualquer fundamento na realidade? Não é bem assim.
Há, em primeiro lugar, homens muito sedutores. Eles são muito bonitos ou muito másculos ou têm uma conversa muito boa. O fato é que as mulheres gostam deles. Da mesma forma que nós, homens, somos atraídos por mulheres muito bonitas, muito sensuais e com muita personalidade. Como alguns desses privilegiados abusam da boa sorte (ou da boa aparência) e fazem o que querem com algumas mulheres, fica entre os homens a ideia simplista de que todas as mulheres gostam de ser maltratadas. Acho bobagem.
A outra coisa a se levar em conta é que as mulheres dão muito valor às emoções. Quando você pergunta a elas sobre cafajestes, eles respondem: deus me livre! Mas, logo em seguida, fazem um reparo: a gente gosta que os nossos homens sejam um pouco cafajestes...
Está vendo, dirá o leitor anti-feminista, elas admitem! Gostam de cafajestes! Não, não é isso. O que elas dizem (o que eu entendo, pelo menos) é que ninguém quer um chato. Ninguém quer um namorado que virou irmão, filho ou amigo. Ninguém quer um casamento apenas seguro, sem surpresas e sem erotismo.
Mulheres precisam de segurança, mas também querem aventura e romance. Há um tanto de Madame Bovary e de Ana Karenina em todas elas, mas isso não deveria nos surpreender ou alarmar. Homens também têm fantasias românticas e, mais frequentemente, fantasias sexuais com a vizinha. Somos humanos, não? Temos desejos inconfessáveis, mas seria injusto que alguém nos julgasse por eles.
Se isso tudo não foi suficiente para fazer balançar o mito do cafajeste, um último argumento: olhe em volta. Você acha mesmo que as mulheres mais bacanas estão com os caras mais safados? Eu tenho certeza que não.

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