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sábado, 29 de outubro de 2011

Vacina de HPV para meninos. Vale a pena?

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Se você gasta R$ 1 mil com supérfluos, vacine seu filho. Mas antes entenda qual é o risco verdadeiro imposto pelo vírus

CRISTIANE SEGATTO
CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)
Um painel de conselheiros do governo americano recomendou nesta semana que meninos e jovens devem ser vacinados contra o papilomavírus humano, mais conhecido como HPV. Na população masculina, o vírus pode provocar câncer de garganta e câncer anal. O HPV também é detectado em metade dos doentes que desenvolvem tumores de pênis – embora ainda não esteja claro se o vírus é mesmo a causa de câncer de pênis.
Mesmo que os rapazes não sofram problemas decorrentes do HPV, a vacinação deles costuma ser justificada com o argumento de que ela interromperia a cadeia de transmissão do vírus. Dessa forma, homens e mulheres sairiam ganhando.
Segundo a nova recomendação americana, meninos de 11 e 12 anos devem receber a imunização (feita em três doses). O comitê ainda recomendou que adolescentes e jovens de 13 a 21 anos também sejam vacinados, caso não tenham recebido todas as três doses.
Essa recomendação deve transformar o mercado de vacinas de HPV nos Estados Unidos. Antes dela, só recebia a vacina quem quisesse comprá-la. A partir da recomendação oficial, a maioria dos seguros de saúde deve começar a oferecê-la.
Não duvido que em breve os fabricantes começarão a criar nos brasileiros que frequentam consultórios particulares a sensação de que não vacinar os meninos é uma tremenda irresponsabilidade.
Em maio, a Anvisa liberou o uso da vacina em meninos e homens de 9 a 26 anos. Antes disso, muitos adolescentes de classe média alta já haviam sido vacinados com receitas de médicos que levavam em conta o uso aprovado pela FDA e pelas autoridades européias.
Não duvido também que em breve o Ministério da Saúde começará a ser pressionado pelas empresas e pela própria sociedade para oferecer a vacina no SUS. Desde que a Constituição de 1988 determinou que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, criou-se a ilusão de que o sistema público de saúde deve sair comprando tudo o que aparece e a qualquer preço.
Ninguém gosta de ouvir que os orçamentos são limitados e escolhas precisam ser feitas. Mas é a pura realidade. Gastar muito com uma tecnologia que trará pouco benefício significa desperdiçar dinheiro público. Quem lucra são as empresas e, muitas vezes, os burocratas. Quem perde é a maioria da população carente que continuará sem o básico do básico.
A lógica é a mesma do orçamento doméstico. Se o orçamento é apertado e decidimos fazer uma extravagância, vai faltar dinheiro em algum outro canto.
Antes de decidir gastar dinheiro (público ou privado) para imunizar meninas ou meninos, é importante entender qual é, de fato, o tamanho do estrago causado pelo HPV.
O vírus é adquirido durante o sexo (oral, vaginal e anal) e responde por mais de 99% dos casos de câncer do colo do útero, o segundo tipo de tumor mais frequente entre as brasileiras - atrás apenas do câncer de mama.
Além de câncer, o HPV pode provocar verrugas genitais em ambos os sexos. O risco dessas complicações existe, mas é muito menor do que a maioria das pessoas imagina.
É por isso que em vários países se discute se o benefício da vacina compensa o custo. Na maioria das vezes, a infecção pelo HPV não é o fim do mundo. Acompanhe esse raciocínio:
75% das pessoas sexualmente ativas adquirem o HPV em algum momento da vida. Ele é eliminado naturalmente pelo organismo de 60% delas. A pessoa nem fica sabendo que teve contato com o vírus.
Apenas 1% dos infectados terá verrugas genitais. Elas são desagradáveis e difíceis de controlar, mas podem ser curadas com pomadas que estimulam o sistema imune a lutar contra as lesões.
Câncer, então, acomete a ínfima minoria das pessoas que tiveram contato com HPV. Somente 0,5% das mulheres infectadas pelo vírus desenvolve tumores do colo do útero. Exames anuais de papanicolau podem detectar lesões pré-cancerosas e evitar o pior.
No caso dos homens, o risco é ainda menor. O câncer de pênis ocorre em apenas 0,05% dos homens que tiveram contato com o vírus. Se os rapazes tivessem o costume de ir ao urologista preventivamente, pequenas lesões poderiam ser tratadas antes de virar câncer.
Não é verdade que quem pega HPV nunca mais se livra dele. Com o tratamento adequado, a pessoa que não eliminou o vírus naturalmente pode se curar e deixar de transmiti-lo. O vírus some.
Mas se o homem ou a mulher ainda tiverem lesões visíveis, isso significa que o parceiro pode ser infectado. Não se sabe com certeza se as pessoas com infecção latente (sem sinais aparentes) transmitem o vírus. Se houver poucas cópias virais no organismo, ele não é transmitido.
Tudo isso posto, vale a pena gastar cerca de R$ 1 mil para imunizar meninos e meninas?
É uma leviandade criar pânico na população por causa do HPV. Mas se a família gasta esse dinheiro com um telefone celular ou com algumas calças jeans, é claro que o investimento vale a pena.
É bom lembrar que nem os casais que usam camisinha estão completamente protegidos. O HPV pode se alojar em regiões que o preservativo não cobre (como o escroto e o ânus) e ser transmitido facilmente.
E o governo? Deve oferecer essa vacina em vez de investir na melhoria dos programas de prevenção e atenção básica à saúde.
Para um país como o Brasil, oferecer essa vacina neste momento seria um luxo injustificável. A menos que os fabricantes reduzissem muito o preço – o que não parecem dispostos a fazer.
Quando o governo foi pressionado a oferecer a vacina para meninas, em 2008, um grupo de especialistas elaborou um parecer técnico. E concluiu que não havia justificativa para que o Ministério da Saúde oferecesse a vacina. As razões:
· A vacina só confere imunidade aos subtipos HPV 6, 11, 16 e 18 para as meninas e mulheres não expostas ou vírus. Ou seja: as meninas teriam que tomar a vacina antes do início da atividade sexual.
· O preço era tão alto que, em 2008, implicaria um gasto de R$ 1,8 bilhão apenas para vacinar a população de 11 e 12 anos. É dinheiro demais. Para bancar o Programa Nacional de Imunizações inteirinho (todas as vacinas do calendário oficial), o governo gasta cerca de R$ 750 milhões por ano.
· É cedo para saber quanto tempo dura a imunidade conferida pela vacina. Os fabricantes dizem que a pessoa fica protegia por pelo menos cinco anos. Se for preciso revacinar a população, a conta se torna impagável.
Penso que essa vacina poderia beneficiar a população da região Norte. Em locais de difícil acesso, onde um simples exame de papanicolau não chega, talvez fosse possível salvar vidas se as mulheres pudessem ser vacinadas. No Norte, o câncer do colo do útero é o mais comum na população feminina (ocorrem 22 casos a cada 100 mil habitantes).
O problema é que a vacina não protege contra todas as causas de câncer do colo do útero. O papanicolau, que detecta lesões pré-cancerosas causadas por outros tipos do HPV, continua sendo fundamental.
As mulheres que vivem à margem do sistema de saúde – seja no Norte, seja em qualquer outra região do país – precisam da garantia de ter acesso ao básico. Os recursos, portanto, devem ser investidos para garantir acesso em massa àquilo que realmente faz diferença: o bom e velho papanicolau.
Em uma linha, a mensagem é a seguinte: se você tem dinheiro de sobra, vacine seus meninos e meninas. Se não tem, e esse é o caso do SUS, gaste naquilo que realmente importa. Sem pânico, sem pirotecnia.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

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