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domingo, 5 de agosto de 2012

Como a acusação do mensalão foi montada

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A saga da Polícia Federal em busca das provas do mensalão – e o momento em que Marcos Valério foi obrigado a colaborar com a Justiça

DIEGO ESCOSTEGUY E MARCELO ROCHA. COM ANDREI MEIRELES E MURILO 

No começo da manhã de 13 de julho de 2005, uma quarta-feira que mudaria a história política do Brasil, uma equipe da Polícia Federal invadiu o prédio de número 380 na Avenida João Azeredo, em Belo Horizonte. Funcionava ali o arquivo do Banco Rural; começava naquele momento o dia mais difícil da carreira daqueles sete delegados e agentes. Pesava sobre eles a responsabilidade de encontrar e apreender os documentos que comprovariam o recém-descoberto esquema do mensalão. Com papéis, havia mensalão. Sem papéis, havia somente as palavras iracundas de Roberto Jefferson – o deputado do PTB que confessara como o governo do PT comprara os partidos da base aliada no Congresso.
Uma semana antes, enquanto a reputação de deputados e ministros estilhaçava-se a cada ária de Jefferson, delegados da PF haviam encontrado em Brasília a testemunha mais importante – e desconhecida – do caso: José Francisco de Almeida Rego, ex-tesoureiro da notória agência do Banco Rural na Capital Federal. Segundo Jefferson, era nessa agência que deputados e assessores buscavam o dinheiro do mensalão – algo que todos os envolvidos, àquela altura, negavam. Pressionado, Rego contou que a agência funcionava como uma espécie de sucursal financeira em Brasília do publicitário Marcos Valério, onde se distribuía dinheiro vivo à larga por ordens dele. Ordens que chegavam por fax ou e-mail, enviados da sede do Banco Rural em Belo Horizonte, onde se controlavam as contas de Valério. Como tudo era feito na camaradagem, e o dinheiro entregue não deixava vestígios, a prova do mensalão estava no arquivo central do Banco Rural. Lá, acreditava-se, constariam os pedidos de saque com os nomes dos beneficiários. Eram esses papéis que os policiais buscavam naquele dia.
“Só saímos daqui com esses documentos”, disseram os delegados assim que chegaram ao arquivo do Rural e entregaram a ordem judicial de busca e apreensão aos funcionários do banco. Prosseguiu-se entre eles o corre-corre que só o desespero provoca. Enquanto os delegados aguardavam a papelada, outras equipes da PF faziam batidas na agência do Rural em Brasília e na sede do banco, em Belo Horizonte (o arquivo do Rural fica noutro endereço). Os policiais tinham esperança de encontrar provas semelhantes nos dois locais. As más notícias, porém, viajavam rapidamente entre os rádios da PF. Câmbio: nada na agência do Rural em Brasília – apenas dez recibos de pagamento, mas sem nomes. Câmbio: nada na sede do Rural em Belo Horizonte. Os documentos, ao que tudo indicava, haviam sido destruídos. No arquivo do Rural, as horas transcorriam lentamente. Dez da manhã. Meio-dia. Duas da tarde. Quatro da tarde – e nada. Os sete policiais acossaram os funcionários e repetiram o ultimato: todo mundo só deixaria o prédio quando os papéis aparecessem. Súbito, apareceram.
A mensagem
Para o país
O trabalho conjunto da Polícia Federal e do Ministério Público ajudou a esclarecer os fatos
Para os juízes
As provas obtidas são auxiliares inestimáveis na tarefa de fazer justiça
Os advogados do Rural permitiram que os policiais fossem à sala onde estavam separadas caixas com os documentos. A equipe da PF constatou, num exame rápido, que se tratava dos papéis procurados. Havia faxes, e-mails, cheques e notas com as ordens de pagamento enviadas por gerentes de Marcos Valério à agência do Rural em Brasília. Eles exibiam os nomes dos deputados e de assessores pilhados no mensalão – entre eles, o petista João Paulo Cunha (ex-presidente da Câmara), José Janene (líder do PP) e Valdemar Costa Neto (presidente do PL). Não havia mais como negar – até aquele dia, Marcos Valério jurava que não repassara dinheiro a Delúbio Soares, e Delúbio Soares jurava que não recebera nada. A prova material confirmava o que Jefferson contara. O mensalão estava provado.
Luís Flávio Zampronha, comandante das ações da Polícia Federal no caso do mensalão. Uma diligência no arquivo do Banco Rural, em Belo Horizonte, mudou o rumo das investigações (Foto: Marcio Lima/ÉPOCA)
 
Os policiais informaram o achado a seus superiores em Brasília, lacraram os documentos e partiram rumo ao aeroporto da Pampulha. Entraram no Cessna Citation, prefixo PT-LVF, avião usado pela PF em suas principais operações – e deram ordem para que o piloto decolasse rumo a Brasília. Enquanto o Citation taxiava na pista, tocou o celular de um delegado. Era o juiz federal Jorge Gustavo Costa, da Quarta Vara de Minas Gerais, o mesmo que autorizara a busca no arquivo do Banco Rural. “Não é para decolar”, disse ele. “Voltem, lacrem tudo e devolvam o material. O processo vai subir.” Subir, no jargão jurídico, significava enviar os documentos do caso ao Supremo Tribunal Federal, onde o inquérito passaria a tramitar. Até então, o processo transcorria na Justiça Federal de Minas, onde estão sediadas as empresas de Marcos Valério. A razão da mudança estava implícita: o esquema envolvia parlamentares e ministros, que têm o direito de ser julgados apenas no STF.
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no Supremo Tribunal Federal, na sexta-feira passada. Ele invocou a Teoria do Domínio do Fato, usada em processos contra o crime organizado, para fundamentar sua acusação contra José Dirceu  (Foto: Celso Junior/ÉPOCA)
Nada mais natural, portanto, que remeter o processo ao Supremo. O que causou estranheza entre os investigadores foi a espantosa velocidade da decisão: as provas haviam sido descobertas havia poucas horas. Nunca antes na história deste país a Justiça fora tão ágil. Os delegados foram informados pelo juiz Costa de que o advogado Marcelo Leonardo, que defendia Valério, lhe dissera havia pouco que seu cliente resolvera colaborar com a Justiça – e entregaria acusados com foro no STF. Ou seja: Valério entregaria o que provavelmente sabia que a PF já obtivera. Em seguida, o juiz Costa checou os documentos apreendidos, percebeu a gravidade do caso e ligou para o então presidente do Supremo, Nelson Jobim. “Traga o processo para cá pessoalmente”, disse Jobim. (Na semana seguinte, o juiz levou os documentos a Brasília.)
Até essa decisão do juiz Costa, os delegados esperavam ter alguns dias para analisar o material apreendido, escrever um relatório com as informações nele descobertas – e, só então, enviá-lo com o exame inicial das provas ao Supremo. Esse é o procedimento normal nesses casos. Mas o mensalão, ao que parece, era diferente. Às 20h40, os delegados já se encontravam na sede do Banco Rural em Belo Horizonte, cercados de advogados, lá deixando os documentos lacrados. A petição de Marcelo Leonardo pedindo que o inquérito fosse remetido ao STF só foi anexada ao processo dois dias depois. Alguém tinha pressa.
Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, procurador-geral da República quando as investigações começaram. Foi ele quem escreveu a primeira versão da acusação – e, em alguns momentos, entrou em conflito com a Polícia Federal (Foto: Joédson Alves/Folhapress)
Na mesma noite do dia 13 de julho, ante o risco da queda da cúpula da República, Delúbio voou a Belo Horizonte. Foi jantar com Marcos Valério. Iniciava-se aí a montagem da versão da defesa. Os fatos viriam a público e eram inegáveis. Era preciso, portanto, enxergá-los sob outra luz, a luz do caixa dois – e não da compra de apoio político. Na mesma noite, o advogado Marcelo Leonardo pediu uma audiência de seu cliente com o então procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza. No dia seguinte, Valério e seu advogado foram a Brasília. Às 15 horas, já estavam com Antonio Fernando. Entregaram a lista de beneficiários do valerioduto – e afirmaram que tudo não passava de caixa dois. Um dia depois, Delúbio foi à Procuradoria-Geral confirmar a versão de Valério. A República sobrevivera.
Este é um trecho de uma das reportagens da cobertura especial sobre o julgamento do mensalão em ÉPOCA desta semana. A edição 742 chega às bancas e ao seu tablet (baixe o aplicativo) neste fim de semana.
>>Leia também: Onze juízes em nome do Brasil 

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