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sábado, 14 de maio de 2011

Energia nuclear verde?

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Reatores baseados em tório, abandonado pelos EUA há decadas, podem ser a opção limpa e segura para as atuais usinas de urânio. A China já tomou a dianteira na nova forma de produzir energia nuclear
Renan Dissenha Fagundes
Bill Gates não tem problemas com energia nuclear: o bilionário americano não está entre as várias pessoas que se puseram a criticar durantemente esse tipo de energia depois do acidente na usina de Fukushima, no Japão, em março. Na semana passada, em um evento da revista Wired, Gates afirmou que há preocupação demais. “Se você comparar com a quantidade de pessoas que o carvão matou por kilowat/hora, energia nuclear é bem menos [letal]”, disse. “Carvão mata menos pessoas de uma vez, o que é melhor para políticos.” Com essas declarações, Gates defende um de seus investimentos. É o Terrapower, projeto de energia nuclear alternativa de Nathan Myhrvold, ex-executivo da Microsoft que publicou no começo do ano o maior livro de culinária da história.
Energia nuclear alternativa? Sim. A maneira que a energia nuclear é feita a partir de elementos radioativos em quase todo o mundo não é a única, nem mesmo a melhor, forma de geração. Por um lado, não há motivos para abandonar a noção, recente, de que energia nuclear pode ser parte de um futuro sustentável para o planeta – uma ideia que tem crescido, até mesmo entre ecologistas. Mas também não há motivos para continuar construindo usinas com a mesma tecnologia de décadas atrás, gigantes e caras e com falhas de segurança. Outros tipos de usinas nucleares são possíveis. E entre esses há um, abandonado pelos Estados Unidos há muitos anos, que tem as características para ser uma fonte de energia importante no século 21 – limpa, segura e possivelmente barata: reatores baseados em tório.
No começo da era nuclear não havia uma escolha óbvia de qual tipo de reator era melhor. Havia várias ideias sendo discutidas, várias empresas e cientistas competindo para ver quem conseguiria criar o reator mais seguro, barato, eficiente. No site do Google que arquiva patentes é possível ver quantas opções havia: mais de 300 patentes sobre reatores nucleares ou componentes relacionados foram arquivadas nos EUA entre 1945 e 1967. A vitória do reator de água leve, presente em quase todas as usinas em funcionamento hoje, não se deu exatamente por qualidade, mas por decisões da Comissão de Energia Atômica dos EUA e do almirante Hyman Rickover, que escolheu esse tipo de reator para os submarinos da marinha americana. “Havia muitas e muitas ideias pelo ar, e elas perderam quando reatores de água leve se tornaram dominantes”, afirmou o professor Robin Cowan ao Boston Globe, em uma reportagem sobre o beco-sem-saída tecnológico (technological lock-in - quando uma tecnologia é dominante sem qualquer razão a não ser circunstância e inércia) da indústria nuclear.
Nos reatores de água leve, o principal combustível é o urânio sólido. Água normal é usada para resfriar os núcleos (daí o nome da tecnologia), que são mantidos sob alta pressão. Uma falha no resfriamento (se por algum motivo a água parar de circular, como em Fukushima) pode causar explosões e o derretimento do núcleo. Além disso, esse tipo de usina deixa para trás grandes quantidades de lixo radioativo, que levam milhares de anos para desaparecer, incluindo um tipo de plutônio que pode ser usado na fabricação de bombas.
Bill Gates investe em um tipo de reator chamado reator de onda viajante (traveling-wave reactor, ou TWR, em inglês). Enquanto os reatores tradicionais precisam de urânio enriquecido para produzir energia – um processo que em si gasta muita energia – o TWR, cujo conceito foi apresentado pela primeira vez na década de 1950, consegue funcionar com lixo radioativo como a maior parte do seu combustível. Sódio líquido é usado para resfriar o núcleo, que aquece até 550 ºC, enquanto reatores normais vão até 330 ºC. Embora possivelmente menor e mais seguro, um TWR ainda tem problemas parecidos com os reatores de água leve: o núcleo sólido, de urânio ou plutônio, aquece e precisa ser resfriado com um líquido. O sódio liquefeito, usado para este fim, pode explodir se entrar em contato com o ar.
A diferença fundamental é a substituição do urânio pelo tório, um mineral abundante e levemente radioativo que tem o nome inspirado no deus nórdico do trovão, Thor. Assim como o urânio e o plutônio, o tório faz parte dos actinídeos, metais pesados e radioativos que ficam na última linha da tabela periódica. Com um reator apropriado, o tório pode ser usado no lugar de urânio para gerar energia nuclear. A principal diferença entre os dois elementos é que a energia do tório, ao contrário de como ocorre com o urânio, pode ser extraída quase completamente, deixando poucos resíduos. Mais: o lixo do tório leva centenas de anos para desaparecer, e não milhares, e o metal não precisa ser processado e enriquecido para virar combustível, o que significa que todo tório disponível na natureza pode ser usado, e não apenas uma pequena parte.
Tentando criar um reator que tivesse zero probabilidade de derreter, o americano Alvin Winberg, então chefe do Oak Ridge, um laboratório do departamento de energia do governos dos EUA, construiu nas décadas de 1950 e 1960 dois reatores baseados em tório diluído em uma solução quente de sais de fluoreto. Esse líquido – o combustível – é colocado em tubos no núcleo do reator, onde o ciclo da fissão nuclear ocorre: o líquido com tório é bombardeado com neutrons e se torna uma variação artifical de urânio. Esse urânio, também diluído em sais, sofre uma fissão nuclear, liberando muita energia – em forma de calor – e neutrons, que vão transformar mais tório em urânio. O sistema funciona em pressão atmosférica e se auto-regula: se os sais ficarem muito quentes, o líquido se expande e sai dos tubos, resfriando o núcleo.
Winberg tentou fazer do tório o principal combustível nuclear dos EUA, mas não conseguiu. O primeiro reator de tório do Oak Ridge operou por uma semana, em 1957. O segundo, entre 1965 e 1969. Em 1973, ele foi afastado do seu cargo no governo. Naquele mesmo ano, a indústria nuclear americana assinou contratos para a construção de 41 usinas, todas usando urânio. “Foi um daqueles momentos da história em que acho que escolhemos o caminho errado, eu sei que escolhemos o caminho errado”, disse a ÉPOCA Kirk Sorensen, ex-engenheiro da NASA e especialista em tório, que mantém há cinco anos o site Energy from Thorium. “A pior parte foi que muitos outros países tinham programas ativos pesquisando tório e reatores de combustíveis líquidos, e eles assumiram que os EUA sabiam o que estavam fazendo e pensaram ‘eles devem ter uma boa razão para cancelar o programa deles, então vamos cancelar o nosso também’.”
Essa percepção, porém, está mudando. Em fevereiro, durante uma conferência da Academia de Ciências da China, o país anunciou oficialmente que vai desenvolver reatores de sais líquidos com tório. “Precisamos de um forno melhor para queimar mais combustível”, afirmou Xu Hongjei, pesquisador de física aplicada do Institudo de Xangai, ao jornal Wen Hui Bao. A China pode até, com esses reatores, substituir os EUA como país detendor da principal tecnologia de energia nuclear do planeta, além de dar um passo importante na direção de uma opção limpa, segura e politicamente aceitável de usina nuclear. A maior parte do tório no mundo está na Índia, mas reservas consideráveis também podem ser encontradas nos EUA, na China, na Austrália, na Turquia, e também no Brasil, embora o tamanho dessas reservas não seja uma certeza. De acordo com uma projeção de 1992 (pdf) da Agência Internacional de Energia Atômica, o Brasil tem reservas de 606 toneladas de tório, além de outras 700 toneladas inferidas. “O Brasil tem tório o suficiente para ser independente por milhões de anos”, afirma Sorensen.
Sorensen compara a escolha com tório para energia nuclear com a revolução da computação pessoal. “Nos anos 1960, haviam grandes companhias com grandes computadores. Nos anos 1970, começaram a aparecer jovens construindo computadores pessoais nas suas garagens”, diz. “E era diferente, muito diferente, ter um computador que não era do tamanho de uma sala, que cabia na sua mesa.” Para ele, a energia do futuro será gerada em pequenos reatores. “Uma cidade pequena pode ter sua própria fonte de energia”, afirma. Sorensen acredita que serão reatores de tório, mas é mais provável que essa seja uma de várias opções limpas e seguras de energia. Vale a frase de Bill Gates, um dos que revolucionou a computação e que agora investe em várias outras formas de energia que não nuclear: “Devemos ir atrás de todas”.

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